Destruir uma obra de Banksy para torna-la mais valiosa – O estranho mundo da cripto arte
Uma empresa especializada na tecnologia Blockchain comprou uma obra original do artista Banksy e a incendiou. Porém, ao invés de destruí-la, eles alegam tê-la tornado mais valiosa, após sua venda como uma peça de cripto arte.
A empresa Injective Protocol, responsável pela façanha, comprou uma pintura em serigrafia de uma galeria em Nova Iorque. Eles a queimaram, com transmissão ao vivo pela conta @BurntBanksy no Twitter.
Mas, por qual motivo alguém iria adquirir uma peça de arte para destruí-la? Entender a resposta requer um entendimento sobre o mundo das NFTs e da Cripto arte, viabilizada pela tecnologia Blockchain.
Este mercado combina o nicho das criptomoedas com um longo debate filosófico sobre a natureza da arte. Não é à toa a dificuldade em se explicar os aspectos jurídicos sobre essas operações.
De forma simplificada, um colecionável digital é composto por dois elementos. O primeiro, uma obra de arte, geralmente digital e às vezes física. O segundo é um token digital que representa a arte, comumente criado pelo artista.
Tokens não fungíveis
No passado, artistas autenticavam seus trabalhos com assinaturas ou certificados concedidos às galerias de arte. Eram formas de garantir a autoria do trabalho, imprescindível para a correta avaliação de seu valor de mercado.
Em 2009 o criador do Bitcoin, Satoshi Nakamoto introduziu um novo método de verificação conhecido como blockchain. Embora sua função principal fosse registrar transações financeiras, a tecnologia se provou muito flexível. Hoje em dia, ela permite a existência de um mercado de colecionáveis, registro de patentes e contratos.
O aspecto mais importante do uso da blockchain nas artes é a impossibilidade de alterá-la. Um artista pode fornecer provas da autenticidade de seu trabalho que nunca sofrerão adulterações e nunca se perderão. Este certificado pode ser vendido em leilões para colecionadores, dando alta liquidez ao mercado.
Os colecionadores compram tokens não fungíveis (NFTs), que não podem ser substituídos. São únicos ou pertencem a uma edição limitada, e não podem ser replicados.
Em alguns casos, a arte será arquivada na blockchain, embora seja mais comum que uma NFT se refira a um trabalho externo. Embora alguns não considerem isso ter de fato uma peça de arte, muitos colecionadores entraram no jogo. A noção de que algo é mais valioso por ser escasso prevalece, mesmo no mundo digital.
Recém chegados a este mercado podem perceber o excesso de trabalhos de baixa qualidade. Por não haver barreiras de entrada, todos são livres para se tornarem cripto artistas. Mas esta impressão é superficial. As vendas de arte via blockchain são impulsionadas por motivos que vão além da estética.
Por exemplo, muitos NFTs como os Cryptopunks foram vendidos por sua idade. São considerados relíquias da blockchain Ethereum. Um dos colecionáveis desta série foi vendido por US$ 1.608.032,00, mesmo se tratando basicamente de um simples desenho pixelado.
Cryptopunks são os NFTs mais antigos em circulação, e carregam “metadados” de grande longevidade na blockchain, o que os tornam tão interessantes. Os colecionadores olham além da arte e focam na tecnologia em que tudo isso ocorre.
Queimando obras artísticas
Mas por que alguém destruiria uma obra original?
Esta é a resposta do coletivo BurntBanksy:
“Se você tivesse o NFT e a peça física, o valor estaria principalmente na peça física. Ao remover a existência da peça física e mantendo o NFT, com ajuda dos smart contracts da blockchain, podemos garantir que ninguém possa alterar a peça e atestar que esta seja a única existente no mundo. Ao fazer isso, o valor da peça física será movido para o NFT.”
Para a maioria isso soa como um absurdo. Há quem diga que o coletivo age de forma provocativa, priorizando obras digitais sobre as obras físicas, invertendo a preferência usual. Mesmo assim, a argumentação segue a lógica das blockchains. Se alguém possuir um NFT de uma obra corpórea, o consenso será a de que esta é a real.
Para inverter este cenário eles decidiram destruir o que seria a obra de arte “real” e manter apenas sua contraparte digital, um token não fungível. Diferente de uma peça física que pode ser rasgada ou queimada, um NFT viverá para sempre em uma blockchain. Estando a salvo de vândalos, tais quais eles mesmos.
Com a “tokenização” e a destruição da obra física, a NFT ocupa o lugar do quadro. O coletivo sinaliza a possibilidade de se digitalizar ativos físicos, e cria questionamentos quanto as implicações morais, legais e sociais desta conduta.
O título III da Lei dos Direitos Autorais (9.610/98) estabelece os direitos morais e seus atributos. Tais direitos são formados por um conjunto de prerrogativas inseparáveis da personalidade do autor sendo intransferíveis e inalienáveis[1]. Quem escreve um livro poderá vender os direitos de distribuição, adaptação e até abrir mão dos lucros de sua obra, mas nunca deixará de ser o autor.
Entre estas prerrogativas, o art. 24, IV, V da Lei n.º 9.610/98 estabelece o direito do autor de “assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”, bem como o direito de “modificar a obra, antes ou depois de utilizada”.
Portanto, o processo realizado com a obra de Banksy entra em uma zona perigosa. Este processo de “tokenização” de obras físicas é aceitável e legalmente aceito? Existe equivalência entre os dois formatos da obra? Os direitos morais do autor foram respeitados? O direito de propriedade sobre a obra física autoriza esta mudança no formato da obra? As questões se multiplicam como a quantidade de obras disponíveis.
Por fim, a escolha do coletivo por uma obra de Banksy é no mínimo interessante. Considerando que o próprio artista destruiu uma de suas obras logo após sua arrematação em 2018, a façanha acaba carregando o mesmo espírito e o mesmo resultado em ambos os casos: um grande aumento no valor de mercado.
[1] FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito Autoral: Da Antiguidade à Internet. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 199.