Servidores que possuem sob sua guarda crianças com TEA podem reduzir sua carga horária.
Em 2021, no Brasil, foram realizados mais de 9,6 milhões de atendimentos em ambulatórios às pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) sendo que 4,1 milhões foram ao público infantil com até 9 anos de idade conforme aponta o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) [1].
O TEA é um transtorno de neurodesenvolvimento caracterizado por gerar dificuldade na interação social, padrões de comportamento repetitivos entre outros comportamentos.
Quem possui sob sua guarda uma criança sabe das responsabilidades diárias e esforços necessários para que o menor possa se desenvolver plenamente. Quando tratamos da criança com TEA, esses cuidados são, no mínimo, intensificados.
Os responsáveis precisam realizar um acompanhamento médico desde de cedo com um equipe multidisciplinar composta por médicos, fisioterapeutas, psicólogos, fonoaudiólogos e ainda realizar programações estruturadas com atividades construtivas no cotidiano da criança e, muitas vezes, até necessitam contratar um cuidador para auxiliar com essa rotina.
Todos esses cuidados são de encargo dos responsáveis legais, isso é o que a Constituição Federal de 1988 ( CF/88) em seu Art. 227 [2], ao atribuir à família o dever de educar, bem como o dever de convivência e o respeito à dignidade dos filhos, devendo ainda, sempre primar pelo desenvolvimento saudável do menor. No mesmo sentido, o Art. 229 da CF/88 [3] atribui aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos.
No mesmo entendimento, o Código Civil, em seu artigo 1.634, impõe como deveres conjugais, o sustento, criação, guarda, companhia e educação dos filhos (1.566, IV). Já os artigos 1.583 a 1.590 do mesmo diploma legal discorrem sobre a proteção dos filhos em caso de rompimento da sociedade conjugal.
Nitidamente, a Lei atribui a responsabilidade de todos os cuidados aos responsáveis legais da criança em decorrência do exercício do Poder Familiar. Ao não atender essas necessidades específicas, a família pode sofrer as sanções legais cabíveis. Mas a responsabilidade pelo atendimento das necessidades dessa criança são apenas dos responsáveis? Não! O artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [4] estabelece que é dever de toda a sociedade amparar essa criança. Tal entendimento decorre do Princípio da Proteção Integral da Criança [5].
É notório que a criança com TEA precisa de cuidados adicionais, sendo comum os responsáveis se encontrarem em uma situação em que não conseguem dar conta de todas as obrigações impostas a eles.
Logo, todas essas obrigações, somadas as rotina cansativa do mercado de trabalho, faz em com que o cotidiano dessas famílias seja tão cansativa quanto os 12 trabalhos de Hércules.
Na tentativa de suavizar a turbulência dessa rotina e sendo uma obrigação social, é possível fornecer aos guardiões dos menores a redução de jornada de trabalho de 30% a 50%.
Tal entendimento não decorre apenas do ECA, mas também da Interpretação sistemática das normas constitucionais e dos termos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assim como da Lei 13.146/ 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
Para os servidores públicos, especificamente, o artigo 98, § 3º, da Lei nº 8.112/90 [6] estabelece a possibilidade de redução da carga horária diária em decorrência da necessidade do menor, sem prejuízo dos vencimentos.
Contudo, a maioria dos municípios e estados brasileiros não possui nem legislação e nem procedimentos próprios para autorizar a redução da carga horária. Portanto, momentaneamente, o servidor que quer colocar em prática o seu direito de reduzir a carga horária precisa se valer do Poder Judiciário para buscar sua imediata implementação.
O entendimento pela redução da carga horária já foi decidido no Recurso Extraordinário (RE) 1237867, que teve repercussão geral reconhecida no Tema 1097 [7]. Logo, o entendimento com relação ao direito à redução de carga horária está, até o momento, pacificado e resguardado pelo Princípio da Segurança Jurídica.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) acompanha esse entendimento:
APELAÇÃO – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – REDUÇÃO DE JORNADA DE TRABALHO SEM PREJUÍZO DE VENCIMENTOS – FILHO PORTADOR DE TRANSTORNO DE ESPECTRO AUTISTA (CID-10: F84.0) – Servidora pública estadual que pretende a aplicação analógica do art. 98, § 3º, da Lei nº 8.112/90, que prevê a redução de jornada de trabalho sem prejuízo de seus vencimentos para servidores públicos federais, para que possa cuidar de seu filho portador de transtorno de espectro autista – Sentença de procedência proferida pelo juízo de primeiro grau – Decisório que merece subsistir – Possibilidade de aplicação analógica da disposição do art. 98, § 3º, da Lei nº 8.112/90 – Interpretação sistemática das normas constitucionais e dos termos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que também é norma constitucional, haja vista ter sido incorporada ao direito pátrio, nos termos art. 5º, § 3º, da Magna Carta – Norma de aplicação imediata, nos termos do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal – Precedentes deste E. TJSP – Sentença mantida – Recurso não provido. (TJ-SP – AC: 10015319620208260457 SP 1001531-96.2020.8.26.0457, Relator: Rubens Rihl, Data de Julgamento: 22/10/2020, 1ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 22/10/2020).
Portanto, é possível afirmar que o servidor que possua sob sua guarda e responsabilidade uma pessoa que precise de cuidados em decorrência do Transtorno do Espetro Autismo tem direito à redução do total da carga horária de 30% até 50%. Contudo, tratando-se de servidores lotados no estado de São Paulo, faz-se necessária a intervenção judicial para que esse direito seja garantido.
Bibliografia
[1] O SIA é o sistema que permite aos gestores locais o processamento das informações de atendimento ambulatorial registrados nos aplicativos de captação do atendimento ambulatorial pelos prestadores públicos e privados contratados/conveniados pelo SUS.
[2] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[3] Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
[4] Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária
[5] A proteção integral orienta e prescreve direitos às pessoas em desenvolvimento, impondo deveres à sociedade, inclusive na implantação das políticas públicas, de modo a contemplar essa situação e proporcionar a construção de um panorama jurídico especial às crianças e adolescentes.
[6] Art. 98. Será concedido horário especial ao servidor estudante, quando comprovada a incompatibilidade entre o horário escolar e o da repartição, sem prejuízo do exercício do cargo.
§ 2º Também será concedido horário especial ao servidor portador de deficiência, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, independentemente de compensação de horário.
3º As disposições constantes do § 2o são extensivas ao servidor que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência.
[7] Tema 1097 – Possibilidade de redução da jornada de trabalho do servidor público que tenha filho ou dependente portador de deficiência.